Uma chama que se apaga - Resenha do filme "Meu Pai" de Florian Zeller
Por Ale Esclapes e Marcelo Moya¹
Quando dizemos exatamente EU para referirmos a nós mesmos? Em que momento Eu sou Alexandre torna-se indissociável, a ponto de ora o Eu conter o Alexandre e ora ser contido pelo Eu? Realmente não sei.
E em que momento EU reconheço o OUTRO, como equivalente a mim? Também não sei. O que sei é que todos os dias um novo Alexandre nasce, morre, se modifica, mas o Eu, esse permanece. Posso dizer EU que hoje ESTOU diferente de ontem, e em raros casos, que já não sou o mesmo, sou um novo EU.
O EU, já nos ensina Buber que está sempre me relação ao TU, sendo indissociáveis. A criação do EU implica a criação do TU, aquele que me espelha, que me refere, que me reconhece. O EU se dá na relação, mas essa relação é em si vazia de significado. Não existe nada lá no EU e nem no OUTRO. São continentes vazios em busca de um significado. São símbolos vazios, chamados primeira e segunda pessoa do singular.
Mas quando crescemos em algum momento esse EU vazio se preenche de Alexandre, que entra em relação com sua mãe, outra palavra vazia, mas que nos ajuda a determinar nosso local no mundo. Mãe é uma palavra relacional, estabelece um lugar. Com as experiências mãe passa a ser “minha mãe”. E assim sucessivamente. Em cada relação se agrega ao EU um novo significado. Mãe agrega o significado “filho”, e assim nos construímos. Seremos “colegas”, “amigos”, “analistas”, “contribuintes”, “amantes” .... a lista é infindável e infinita, se dermos sorte. Mas esse se trata do começo e quiçá do meio da vida. Agora podemos falar de um outro momento específico, a velhice.
“Meu Pai” dirigido por Florian Zeller trata justamente dessa fase da vida em que a unidade biológica que costumamos chamar de corpo, está lá, ainda operante, mas nosso cérebro não. É nesse cenário que o filme se desenrola. Anthony Hopkins interpreta, não por acaso, Anthony, um octogenário sofrendo demência. O filme de forma maestral vai nos levando para dentro do que resta da memória de Anthony e o impacto disso na relação com sua filha Anne, interpretada pela fabulosa Olivia Colman. O filme é delicado o suficiente para que não saibamos o que é real ou o que é imaginário dentro do filme, dado que ele é contato basicamente a partir do vértice de Anthony.
Uma situação emocional é acompanhar a morte de uma pessoa, por exemplo, por câncer. Corpo e alma se despedem ao mesmo tempo. Outra experiência emocional bem distinta é acompanhar a morte do EU dissociada do corpo. A chama que habita o EU se apaga lentamente: as memórias, que são as bases simbólicas com as quais nos relacionamos vão se desvanecendo. É a morte de um ente querido em vida, e o corpo pode estar lá muito tempo para nos lembrarmos disso. Às situações se juntam aspectos paranoicos típicos dessa fase de dissolução do EU, e consequentemente do TU. O par EU-TU se dissolve a partir do EU, e a realidade se torna irreconhecível. Duas frases chamam muito atenção para esse momento, quando Anthony pergunta francamente quem é Anne. E talvez a cena mais inquietante é quando Anthony se faz a grande pergunta: “quem sou eu?”, e pela primeira vez no filme tem um vislumbre da resposta.
É um filme delicado, mas não é um filme fácil, pois coloca em cena não só um possível futuro de nossos pais, mas de nosso futuro. O EU sempre estará aqui, mas a resposta a pergunta “quem sou eu?”, não.
¹Psicanalista, professor, escritor e diretor da Escola Paulista de Psicanálise-EPP e do Instituto Ékatus de Psicanálise. Autor do Livro "A pobreza do Analista e outros trabalhos 1997-2015" e organizador da Coleção Transformações & Invariâncias.
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